Alguns dos textos de Eduardo Galeano, lidos na última reunião pelas peças da Engrenagem! Fizemos uma dinâmica, onde cada um recebeu um texto a ser lido. Em seguida, um único texto foi dividido em sete partes, tendo suas partes numeradas e dobradas com seus respectivos números. Fizemos o sorteio e os textos foram lidos, de acordo com a sequência que cada um recebeu.
A acrobata (Para o Engrenagem)
Luz Marina Acosta era menininha quando descobriu o circo Firuliche. O circo Firuliche emergiu certa noite, mágico barco de luzes, das profundidades do Lago da Nicarágua. Eram clarins guerreiros as cometas de papelão dos palhaços e bandeiras altas os farrapos que ondulavam anunciando a maior festa do mundo. A lona estava toda cheia de remendos, e também os leões, aposentados leões; mas a lona era um castelo e os leões, os reis da selva. E uma senhora rechonchuda, brilhante de lantejoulas, era a rainha dos céus, balançando nos trapézios a um metro do chão.
Então, Luz Marina decidiu tornar-se acrobata. E saltou de verdade, lá do alto, e em sua primeira acrobacia, aos seis anos de idade, quebrou as costelas.
E assim foi, depois, a vida. Na guerra, longa guerra contra a ditadura de Somoza, e nos amores: sempre voando, sempre quebrando as costelas.
Porque quem entra no circo Firuliche não sai jamais.
Celebração da coragem (Rodrigo Abrahão)
Sérgio Vuskovic me conta os últimos dias de José Tohá. — Suicidou-se — disse o general Pinochet —. O governo não pode garantir a imortalidade de ninguém — escreveu um jornalista da imprensa oficial.
— Estava magro por causa dos nervos — declarou o general Leigh.
Os generais chilenos odiavam-no. Tohá tinha sido ministro da Defesa no governo Allende, e conhecia os seus segredos.
Estava num campo de concentração, na ilha de Dawson, ao sul do sul.
Os prisioneiros estavam condenados a trabalhos forçados. Debaixo da chuva, metidos no barro ou na neve, os prisioneiros carregavam pedras, erguiam muros, colocavam encanamentos, pregavam postes e estendiam cercas de arame farpado.
Tohá, que tinha um metro e noventa de altura, estava pesando cinqüenta quilos. Nos interrogatórios, desmaiava. Era interrogado sentado numa cadeira, com os olhos vendados. Quando despertava, não tinha forças para falar, mas sussurrava:
— Escute, oficial. Sussurrava:
— Viva os pobres do mundo.
Estava há algum tempo tombado na barraca, quando um dia levantou-se. Foi o último dia em que se levantou.
Fazia muito frio, como sempre, mas havia sol. Alguém conseguiu café bem quente para ele e o negro Jorquera assoviou para ele um tango de Gardel, um daqueles velhos tangos dos quais ele tanto gostava.
As pernas tremiam, e a cada passo os joelhos se dobravam, mas Tohá dançou aquele tango. Dançou-o com uma vassoura, magra como ele, ele e a vassoura, ele encostando o cabo da vassoura em sua cara de fidalgo cavalheiro, os olhinhos fechados, até que numa volta caiu ao chão e já não conseguiu mais levantar. Nunca mais foi visto.
A alienação (Rodrigo Gondim)
Em meus anos moços, fui caixa de banco. Recordo, entre os clientes, um fabricante de camisas. O gerente do banco renovava suas promissórias só por piedade. O pobre camiseiro vivia em perpétua soçobra. Suas camisas não eram ruins, mas ninguém as comprava.
Certa noite, o camiseiro foi visitado por um anjo. Ao amanhecer, quando despertou, estava iluminado. Levantou-se de um salto.
A primeira coisa que fez foi trocar o nome de sua empresa, que passou a se chamar Uruguai Sociedade Anônima, patriótico nome cuja sigla é U. S. A. A segunda coisa que fez foi pregar nos colarinhos de suas camisas uma etiqueta que dizia, e não mentia: Made in U. S. A. A terceira coisa que fez foi vender camisas feito louco. E a quarta coisa que fez foi pagar o que devia e ganhar muito dinheiro.
A função da arte (Matheus Toledo)
Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff, levou-o para que descobrisse o mar. Viajaram para o Sul. Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando.
Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza.
E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai:
— Me ajuda a olhar!
Mapa-múndi / A fome (Jonas de Sá)
Um sistema de desvinculo: Boi sozinho se lambe melhor.., O próximo, o outro, não é seu irmão, nem seu amante. O outro é um competidor, um inimigo, um obstáculo a ser vencido ou uma coisa a ser usada. O sistema, que não dá de comer, tampouco dá de amar: condena muitos à fome de pão e muitos mais à fome de abraços.
O sistema:
Com uma das mãos rouba o que com a outra empresta.
Suas vítimas:
Quanto mais pagam, mais devem.
Quanto mais recebem, menos têm.
Quanto mais vendem, menos compram.
No Sul, a repressão. Ao Norte, a depressão.
Não são poucos os intelectuais do Norte que se casam com as revoluções do Sul só pelo prazer de ficarem viúvos. Prestigiosamente choram, choram a cântaros, choram mares, a morte de cada ilusão; e nunca demoram muito para descobrir que o socialismo é o caminho mais longo para chegar do capitalismo ao capitalismo.
A moda do Norte, moda universal, celebra a arte neutra e aplaude a víbora que morde a própria cauda e acha que é saborosa. A cultura e a política se converteram em artigos de consumo. Os presidentes são eleitos pela televisão, como os sabonetes, e os poetas cumprem uma função decorativa. Não há maior magia que a magia do mercado, nem heróis mais heróis que os banqueiros.
A democracia é um luxo do Norte. Ao Sul é permitido o espetáculo, que não é negado a ninguém. E ninguém se incomoda muito, afinal, que a política seja democrática, desde que a economia não o seja. Quando as cortinas se fecham no palco, uma vez que os votos foram depositados nas urnas, a realidade impõe a lei do mais forte, que a lei do dinheiro. Assim determina a ordem natural das coisas. No Sul do mundo, ensina o sistema, a violência e fome não pertencem à história, mas à natureza, e a justiça liberdade foram condenadas a odiar-se entre si.
A dieta (Carlos Aleixo)
Sarah Tarler Bergholz era muito baixinha. Não precisava nem sentar para que seus netos penteassem seus cabelos, que caiam em caracóis da sua cara simpática até a altura do umbigo.
Sarah estava tão gorda que já não podia respirar. Num hospital de Chicago, o médico disse a ela o que era evidente: para recuperar a proporção entre estatura e voluma, deveria fazer uma dieta rigorosa e eliminar as gorduras.
A voz de Sarah era de seda. Suas mais enérgicas afirmações pareciam confidências. Falando como que em segredo, olhou fico para o médico e disse:
- Eu não tenho certeza se a vida vale a pena sem salame.
Morreu abraçada à sua perdição, no ano seguinte. O coração falhou. Para a ciência era um caso claro; mas jamais se saberá se o coração estava farto de tanto salame, ou exausto de tanto se dar.
(Bocas do tempo)
O diagnóstico e a terapêutica / A pequena morte (Cristina Froment)
O amor é uma das doenças mais bravas e contagiosas. Qualquer um reconhece os doentes dessa doença. Fundas olheiras delatam que jamais dormimos, despertos noite após noite pelos abraços, ou pela ausência de abraços, e padecemos febres devastadoras e sentimos uma irresistível necessidade de dizer estupidezes. O amor pode ser provocado deixando cair um punhadinho de pó de me ame, como por descuido, no café ou na sopa ou na bebida. Pode ser provocado, mas não pode impedir. Não o impede nem a água benta, nem o pó de hóstia; tampouco o dente de alho, que nesse caso não serve para nada. O amor é surdo frente ao Verbo divino e ao esconjuro das bruxas. Não há decreto de governo que possa com ele, nem poção capaz de evitá-lo, embora as vivandeiras apregoem, nos mercados, infalíveis beberagens com garantia e tudo.
Não nos provoca riso o amor quando chega ao mais profundo de sua viagem, ao mais alto de seu vôo: no mais profundo, no mais alto, nos arranca gemidos e suspiros, vozes de dor, embora seja dor jubilosa, e pensando bem não há nada de estranho nisso, porque nascer é uma alegria que dói. Pequena morte, chamam na França a culminação do abraço, que ao quebrar-nos faz por juntar-nos, e perdendo-nos faz por nos encontrar e acabando conosco nos principia. Pequena morte, dizem; mas grande, muito grande haverá de ser, se ao nos matar nos nasce.
Crônica da cidade de Nova Iorque (Daniel Carrarini)
É madrugada e estou longe do hotel, bem ao sul da ilha de Manhattan. Tomo um táxi. Digo aonde vou em perfeito inglês, talvez ditado pelo fantasma de meu tataravô de Liverpool. O chofer me responde em perfeito castelhano de Guayaquil.
Começamos a rodar, e o chofer me conta a sua vida. Dispara a falar, e não pára. Fala sem olhar para mim, com os olhos grudados no rio de luzes dos automóveis na avenida. Conta dos assaltos que sofreu, dás vezes em que quiseram matá-lo, da loucura do trânsito nesta cidade de Nova Iorque, e fala do sufoco, do compre, compre, use, jogue fora, seja comprado, seja usado, seja jogado, e aqui o negócio é abrir caminho na porrada, na base do esmague ou será esmagado, passam por cima de você, e ele está nesta desde que era garoto, desse jeito, desde que era um garoto recém-chegado do Equador — e conta que agora foi abandonado pela mulher.
A mulher foi-se embora depois de doze anos de casamento. Não é culpa dela, diz. Entro e tchau, diz. Ela nunca gozou, diz.
Diz que a culpa é da próstata.
1 Um grupo de extraterrestres visitou recentemente nosso planeta. Eles queriam nos conhecer, por mera curiosidade ou sabe-se lá com que ocultas intenções.Os extraterrestres começaram por onde deviam começar. Iniciaram a expedição estudando o país que é o número um em tudo, número um até nas linhas telefônicas internacionais: o poder obedecido, o paraíso invejado, o modelo que o mundo inteiro imita. Começaram por ali, tratando de entender o manda-chuva para depois entender todos os outros.Chegaram em tempo de eleições. Os cidadãos acabavam de votar e o prolongado acontecimento havia mantido o mundo todo em suspenso.
A delegação extraterrestre foi recebida pelo presidente que saía. A entrevista teve lugar no Salão Oval da Casa Branca, reservado exclusivamente aos visitantes do espaço sideral, para evitar escândalos. O homem que concluía seu mandato respondeu às perguntas sorrindo.
2 Os extraterrestres queriam saber se no país vigorava um sistema de partido único, pois tinham ouvido na tevê apenas dois candidatos e os dois diziam a mesma coisa.E tinham também outras inquietudes:Por que demoraram mais de um mês para contar os votos? Aceitariam os senhores a nossa ajuda para superar este atraso tecnológico? Por que sempre vota apenas a metade da população adulta? Por que a outra metade nunca se dá a esse trabalho?
3 Por que ganha aquele que chega em segundo lugar? Por que perde o candidato que tem 328.696 votos de vantagem? A democracia não é o governo da maioria?E outro enigma os preocupava: por que os outros países aceitam que este país lhes tome a lição de democracia, dite-lhes normas e lhes vigie as eleições? As respostas os deixaram ainda mais perplexos.Mas continuaram perguntando. Aos geógrafos: por que se chama América este país que é um dos muitos países do continente americano?Aos dirigentes esportivos: por que se chama Campeonato Mundial ("World Series") o torneio nacional de beisebol?
4 Aos chefes militares: por que o Ministério da Guerra se chama Secretaria da Defesa, num país que nunca foi invadido por ninguém?Aos sociólogos: por que uma sociedade tão livre tem o maior número de presidiários do mundo?Aos psicólogos: por que uma sociedade tão sã engole a metade dos psicofármacos que o planeta fabrica?Aos dietistas: por que tem o maior número de obesos o país que dita o cardápio dos demais países?
5 Se os extraterrestres fossem simples terrestres, esta absurda perguntalhada teria acabado mal. No melhor dos casos, teriam recebido um portaço no nariz. Toda tolerância tem limite. Mas eles seguiram curioseando, a salvo de qualquer suspeita de impertinência, má-educação ou segundas intenções. E perguntaram aos estrategistas da política externa: se os senhores têm, aqui pertinho, uma ilha onde estão à vista os horrores do inferno comunista, por que não organizam excursões ao invés de proibir as viagens?E aos signatários do tratado de livre comércio: se agora está aberta a fronteira com o México, por que morre mais de um mexicano por dia querendo cruzá-la? E aos especialistas em direitos trabalhistas: por que MacDonald's e Wal-Mart proíbem os sindicatos, aqui e em todos os países onde operam?
6 E aos economistas: se a economia duplicou nos últimos vinte anos, por que a maioria dos trabalhadores ganha menos do que antes e trabalha mais horas?Ninguém negava resposta àquelas figurinhas, que persistiam em seus disparates. E perguntaram aos responsáveis pela saúde pública: por que proíbem que as pessoas fumem, enquanto fuma livremente os automóveis e as fábricas?E ao general que dirige a guerra contra as drogas: por que as prisões estão cheias de drogadinhos e vazias de banqueiros lavadores de narcodólares?
7 E aos diretores do Fundo Monetário e do Banco Mundial: se este país tem a maior dívida externa do planeta, e deve mais do que todos os outros países juntos, por que os senhores não o obrigam a cortar gastos públicos e eliminar seus subsídios?E aos cientistas políticos: por que os que aqui governam falam sempre de paz, enquanto este país vende a metade das armas de todas as guerras? E aos ambientalistas: por que os que aqui governam falam sempre no futuro do mundo, enquanto este país gera a maior parte da contaminação que está acabando com o futuro do mundo?Quanto mais explicações recebiam, menos entendiam. Mas durou pouco a expedição. Os turistas se deram por vencidos.
A acrobata (Para o Engrenagem)
Luz Marina Acosta era menininha quando descobriu o circo Firuliche. O circo Firuliche emergiu certa noite, mágico barco de luzes, das profundidades do Lago da Nicarágua. Eram clarins guerreiros as cometas de papelão dos palhaços e bandeiras altas os farrapos que ondulavam anunciando a maior festa do mundo. A lona estava toda cheia de remendos, e também os leões, aposentados leões; mas a lona era um castelo e os leões, os reis da selva. E uma senhora rechonchuda, brilhante de lantejoulas, era a rainha dos céus, balançando nos trapézios a um metro do chão.
Então, Luz Marina decidiu tornar-se acrobata. E saltou de verdade, lá do alto, e em sua primeira acrobacia, aos seis anos de idade, quebrou as costelas.
E assim foi, depois, a vida. Na guerra, longa guerra contra a ditadura de Somoza, e nos amores: sempre voando, sempre quebrando as costelas.
Porque quem entra no circo Firuliche não sai jamais.
Celebração da coragem (Rodrigo Abrahão)
Sérgio Vuskovic me conta os últimos dias de José Tohá. — Suicidou-se — disse o general Pinochet —. O governo não pode garantir a imortalidade de ninguém — escreveu um jornalista da imprensa oficial.
— Estava magro por causa dos nervos — declarou o general Leigh.
Os generais chilenos odiavam-no. Tohá tinha sido ministro da Defesa no governo Allende, e conhecia os seus segredos.
Estava num campo de concentração, na ilha de Dawson, ao sul do sul.
Os prisioneiros estavam condenados a trabalhos forçados. Debaixo da chuva, metidos no barro ou na neve, os prisioneiros carregavam pedras, erguiam muros, colocavam encanamentos, pregavam postes e estendiam cercas de arame farpado.
Tohá, que tinha um metro e noventa de altura, estava pesando cinqüenta quilos. Nos interrogatórios, desmaiava. Era interrogado sentado numa cadeira, com os olhos vendados. Quando despertava, não tinha forças para falar, mas sussurrava:
— Escute, oficial. Sussurrava:
— Viva os pobres do mundo.
Estava há algum tempo tombado na barraca, quando um dia levantou-se. Foi o último dia em que se levantou.
Fazia muito frio, como sempre, mas havia sol. Alguém conseguiu café bem quente para ele e o negro Jorquera assoviou para ele um tango de Gardel, um daqueles velhos tangos dos quais ele tanto gostava.
As pernas tremiam, e a cada passo os joelhos se dobravam, mas Tohá dançou aquele tango. Dançou-o com uma vassoura, magra como ele, ele e a vassoura, ele encostando o cabo da vassoura em sua cara de fidalgo cavalheiro, os olhinhos fechados, até que numa volta caiu ao chão e já não conseguiu mais levantar. Nunca mais foi visto.
A alienação (Rodrigo Gondim)
Em meus anos moços, fui caixa de banco. Recordo, entre os clientes, um fabricante de camisas. O gerente do banco renovava suas promissórias só por piedade. O pobre camiseiro vivia em perpétua soçobra. Suas camisas não eram ruins, mas ninguém as comprava.
Certa noite, o camiseiro foi visitado por um anjo. Ao amanhecer, quando despertou, estava iluminado. Levantou-se de um salto.
A primeira coisa que fez foi trocar o nome de sua empresa, que passou a se chamar Uruguai Sociedade Anônima, patriótico nome cuja sigla é U. S. A. A segunda coisa que fez foi pregar nos colarinhos de suas camisas uma etiqueta que dizia, e não mentia: Made in U. S. A. A terceira coisa que fez foi vender camisas feito louco. E a quarta coisa que fez foi pagar o que devia e ganhar muito dinheiro.
A função da arte (Matheus Toledo)
Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff, levou-o para que descobrisse o mar. Viajaram para o Sul. Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando.
Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza.
E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai:
— Me ajuda a olhar!
Mapa-múndi / A fome (Jonas de Sá)
Um sistema de desvinculo: Boi sozinho se lambe melhor.., O próximo, o outro, não é seu irmão, nem seu amante. O outro é um competidor, um inimigo, um obstáculo a ser vencido ou uma coisa a ser usada. O sistema, que não dá de comer, tampouco dá de amar: condena muitos à fome de pão e muitos mais à fome de abraços.
O sistema:
Com uma das mãos rouba o que com a outra empresta.
Suas vítimas:
Quanto mais pagam, mais devem.
Quanto mais recebem, menos têm.
Quanto mais vendem, menos compram.
No Sul, a repressão. Ao Norte, a depressão.
Não são poucos os intelectuais do Norte que se casam com as revoluções do Sul só pelo prazer de ficarem viúvos. Prestigiosamente choram, choram a cântaros, choram mares, a morte de cada ilusão; e nunca demoram muito para descobrir que o socialismo é o caminho mais longo para chegar do capitalismo ao capitalismo.
A moda do Norte, moda universal, celebra a arte neutra e aplaude a víbora que morde a própria cauda e acha que é saborosa. A cultura e a política se converteram em artigos de consumo. Os presidentes são eleitos pela televisão, como os sabonetes, e os poetas cumprem uma função decorativa. Não há maior magia que a magia do mercado, nem heróis mais heróis que os banqueiros.
A democracia é um luxo do Norte. Ao Sul é permitido o espetáculo, que não é negado a ninguém. E ninguém se incomoda muito, afinal, que a política seja democrática, desde que a economia não o seja. Quando as cortinas se fecham no palco, uma vez que os votos foram depositados nas urnas, a realidade impõe a lei do mais forte, que a lei do dinheiro. Assim determina a ordem natural das coisas. No Sul do mundo, ensina o sistema, a violência e fome não pertencem à história, mas à natureza, e a justiça liberdade foram condenadas a odiar-se entre si.
A dieta (Carlos Aleixo)
Sarah Tarler Bergholz era muito baixinha. Não precisava nem sentar para que seus netos penteassem seus cabelos, que caiam em caracóis da sua cara simpática até a altura do umbigo.
Sarah estava tão gorda que já não podia respirar. Num hospital de Chicago, o médico disse a ela o que era evidente: para recuperar a proporção entre estatura e voluma, deveria fazer uma dieta rigorosa e eliminar as gorduras.
A voz de Sarah era de seda. Suas mais enérgicas afirmações pareciam confidências. Falando como que em segredo, olhou fico para o médico e disse:
- Eu não tenho certeza se a vida vale a pena sem salame.
Morreu abraçada à sua perdição, no ano seguinte. O coração falhou. Para a ciência era um caso claro; mas jamais se saberá se o coração estava farto de tanto salame, ou exausto de tanto se dar.
(Bocas do tempo)
O diagnóstico e a terapêutica / A pequena morte (Cristina Froment)
O amor é uma das doenças mais bravas e contagiosas. Qualquer um reconhece os doentes dessa doença. Fundas olheiras delatam que jamais dormimos, despertos noite após noite pelos abraços, ou pela ausência de abraços, e padecemos febres devastadoras e sentimos uma irresistível necessidade de dizer estupidezes. O amor pode ser provocado deixando cair um punhadinho de pó de me ame, como por descuido, no café ou na sopa ou na bebida. Pode ser provocado, mas não pode impedir. Não o impede nem a água benta, nem o pó de hóstia; tampouco o dente de alho, que nesse caso não serve para nada. O amor é surdo frente ao Verbo divino e ao esconjuro das bruxas. Não há decreto de governo que possa com ele, nem poção capaz de evitá-lo, embora as vivandeiras apregoem, nos mercados, infalíveis beberagens com garantia e tudo.
Não nos provoca riso o amor quando chega ao mais profundo de sua viagem, ao mais alto de seu vôo: no mais profundo, no mais alto, nos arranca gemidos e suspiros, vozes de dor, embora seja dor jubilosa, e pensando bem não há nada de estranho nisso, porque nascer é uma alegria que dói. Pequena morte, chamam na França a culminação do abraço, que ao quebrar-nos faz por juntar-nos, e perdendo-nos faz por nos encontrar e acabando conosco nos principia. Pequena morte, dizem; mas grande, muito grande haverá de ser, se ao nos matar nos nasce.
Crônica da cidade de Nova Iorque (Daniel Carrarini)
É madrugada e estou longe do hotel, bem ao sul da ilha de Manhattan. Tomo um táxi. Digo aonde vou em perfeito inglês, talvez ditado pelo fantasma de meu tataravô de Liverpool. O chofer me responde em perfeito castelhano de Guayaquil.
Começamos a rodar, e o chofer me conta a sua vida. Dispara a falar, e não pára. Fala sem olhar para mim, com os olhos grudados no rio de luzes dos automóveis na avenida. Conta dos assaltos que sofreu, dás vezes em que quiseram matá-lo, da loucura do trânsito nesta cidade de Nova Iorque, e fala do sufoco, do compre, compre, use, jogue fora, seja comprado, seja usado, seja jogado, e aqui o negócio é abrir caminho na porrada, na base do esmague ou será esmagado, passam por cima de você, e ele está nesta desde que era garoto, desse jeito, desde que era um garoto recém-chegado do Equador — e conta que agora foi abandonado pela mulher.
A mulher foi-se embora depois de doze anos de casamento. Não é culpa dela, diz. Entro e tchau, diz. Ela nunca gozou, diz.
Diz que a culpa é da próstata.
1 Um grupo de extraterrestres visitou recentemente nosso planeta. Eles queriam nos conhecer, por mera curiosidade ou sabe-se lá com que ocultas intenções.Os extraterrestres começaram por onde deviam começar. Iniciaram a expedição estudando o país que é o número um em tudo, número um até nas linhas telefônicas internacionais: o poder obedecido, o paraíso invejado, o modelo que o mundo inteiro imita. Começaram por ali, tratando de entender o manda-chuva para depois entender todos os outros.Chegaram em tempo de eleições. Os cidadãos acabavam de votar e o prolongado acontecimento havia mantido o mundo todo em suspenso.
A delegação extraterrestre foi recebida pelo presidente que saía. A entrevista teve lugar no Salão Oval da Casa Branca, reservado exclusivamente aos visitantes do espaço sideral, para evitar escândalos. O homem que concluía seu mandato respondeu às perguntas sorrindo.
2 Os extraterrestres queriam saber se no país vigorava um sistema de partido único, pois tinham ouvido na tevê apenas dois candidatos e os dois diziam a mesma coisa.E tinham também outras inquietudes:Por que demoraram mais de um mês para contar os votos? Aceitariam os senhores a nossa ajuda para superar este atraso tecnológico? Por que sempre vota apenas a metade da população adulta? Por que a outra metade nunca se dá a esse trabalho?
3 Por que ganha aquele que chega em segundo lugar? Por que perde o candidato que tem 328.696 votos de vantagem? A democracia não é o governo da maioria?E outro enigma os preocupava: por que os outros países aceitam que este país lhes tome a lição de democracia, dite-lhes normas e lhes vigie as eleições? As respostas os deixaram ainda mais perplexos.Mas continuaram perguntando. Aos geógrafos: por que se chama América este país que é um dos muitos países do continente americano?Aos dirigentes esportivos: por que se chama Campeonato Mundial ("World Series") o torneio nacional de beisebol?
4 Aos chefes militares: por que o Ministério da Guerra se chama Secretaria da Defesa, num país que nunca foi invadido por ninguém?Aos sociólogos: por que uma sociedade tão livre tem o maior número de presidiários do mundo?Aos psicólogos: por que uma sociedade tão sã engole a metade dos psicofármacos que o planeta fabrica?Aos dietistas: por que tem o maior número de obesos o país que dita o cardápio dos demais países?
5 Se os extraterrestres fossem simples terrestres, esta absurda perguntalhada teria acabado mal. No melhor dos casos, teriam recebido um portaço no nariz. Toda tolerância tem limite. Mas eles seguiram curioseando, a salvo de qualquer suspeita de impertinência, má-educação ou segundas intenções. E perguntaram aos estrategistas da política externa: se os senhores têm, aqui pertinho, uma ilha onde estão à vista os horrores do inferno comunista, por que não organizam excursões ao invés de proibir as viagens?E aos signatários do tratado de livre comércio: se agora está aberta a fronteira com o México, por que morre mais de um mexicano por dia querendo cruzá-la? E aos especialistas em direitos trabalhistas: por que MacDonald's e Wal-Mart proíbem os sindicatos, aqui e em todos os países onde operam?
6 E aos economistas: se a economia duplicou nos últimos vinte anos, por que a maioria dos trabalhadores ganha menos do que antes e trabalha mais horas?Ninguém negava resposta àquelas figurinhas, que persistiam em seus disparates. E perguntaram aos responsáveis pela saúde pública: por que proíbem que as pessoas fumem, enquanto fuma livremente os automóveis e as fábricas?E ao general que dirige a guerra contra as drogas: por que as prisões estão cheias de drogadinhos e vazias de banqueiros lavadores de narcodólares?
7 E aos diretores do Fundo Monetário e do Banco Mundial: se este país tem a maior dívida externa do planeta, e deve mais do que todos os outros países juntos, por que os senhores não o obrigam a cortar gastos públicos e eliminar seus subsídios?E aos cientistas políticos: por que os que aqui governam falam sempre de paz, enquanto este país vende a metade das armas de todas as guerras? E aos ambientalistas: por que os que aqui governam falam sempre no futuro do mundo, enquanto este país gera a maior parte da contaminação que está acabando com o futuro do mundo?Quanto mais explicações recebiam, menos entendiam. Mas durou pouco a expedição. Os turistas se deram por vencidos.
2 comentários:
Parei varias vezes durante a semana para pensar sobre o meu próprio texto(A função da arte) e lembrando oq o Abrahão viu no texto com ligação a minha pessoa, não tenho conclusão pois em cada momento vem novos pensamentos. Mas acredito que tem muito haver com o meu processo de crescimento como ator e tb tem muito haver com o processo do Engrenagem, pois estou e estamos descobrindo muitas coisas novas simplesmente com a visão e critica do outro.
Fiquem com DEUS e com Nossa Mãezinha do céu.
Beijos
A alienação é a maior doença do ser humano. MAs não podemos deixar essa epidemia invadir nossas almas.
A arte é um dos melhores remédios!
Parabéns pelo trabalho maravilhoso que está sendo realizado por vocês!
Bjus e merda para todos!!!
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