A cantora argentina Mercedes Sosa morreu neste domingo, no hospital Trinidad, em Buenos Aires, onde estava internada desde meados de setembro. Os motivos divulgados de sua morte foram complicações renais e hepáticas, além de problemas respiratórios. A intérprete de 74 anos sofria do Mal de Chagas desde o final dos anos 1970. As vozes mais à esquerda poderiam resumir o parágrafo acima a quase um slogan: "a voz dos sem voz se calou". O coro postado mais à direita provavelmente se sentiria aliviado: durante a ditadura militar que governou a Argentina entre 1976 e 1983, Mercedes era o grilo falante e cantante que insistia em evocar a consciência de que a intolerância e a perseguição política não se afina com a dignidade humana. Deixando de lado as paixões políticas, seria justo dizer que morreu uma das principais cantoras latino-americanas, a voz maior de clássicos como Volver a los 17, uma artista que ignorou fronteiras artísticas e geográficas, celebrando um ideal latino ao dividir canções, álbuns e palcos com Milton Nascimento, Charly García, Fagner, Antonio Tarragó Ros, Beth Carvalho, Joan Manuel Serrat, Shakira e Fito Páez. Para aquela que imortalizou Gracias a la Vida (da chilena Violeta Parra), a boa música exigia independência artística. Por exemplo, no show que La Negra (apelido recebido pela cor de sua vasta cabeleira) fez há dois anos nem Porto Alegre, o repertório incluía Coração de Estudante (Nascimento e Wagner Tiso), mas também Gente Humilde (Garoto, Vinicius de Moraes e Chico Buarque) e Un Vestido y un Amor (Páez) e El Cosechero, que ela interpretou ao lado de seu amigo Luiz Carlos Borges, acordeonista gaúcho. Na entrevista que concedeu a Zero Hora em 2007, Mercedes mostrou que sua o fato de colocar sua voz forte incondicionalmente a serviço de quem é fraco não a fazia perder sua lucidez. Comentando avanços sociais e políticos na América Latina, ela cravou: — Não é a esquerda que está no poder, são alguns políticos de esquerda que estão no poder. Depois do desmembramento da União Soviética, o capitalismo está sozinho. Essa lucidez sempre custou caro a Mercedes. Ela teve de exilar-se em Madri entre 1979 e 1982, depois de receber ameaças de morte de grupos extremistas de direita. Sua partida, inclusive, foi precipitada por um show que fez em La Plata, quando ela e todo o público que a tinha ido assistir foram detidos. Porto Alegre também foi testemunha de um episódio de provocação terrorista contra ela. Em 1980, durante um show no Gigantinho, alguém detonou uma bomba de efeito moral para provocar correria e choro entre a plateia e inviabilizar o concerto da argentina. Até que Mercedes assumiu o comando com sua voz, e acalmou o público, que se juntou a ela em um coro emocionado. Anos mais tarde, Mercedes recebeu uma homenagem mais formal de parte dos gaúchos: em 1996, ela foi agraciada com a Medalha Simões Lopes Neto, outorgada pelo governo do Rio Grande do Sul. Um dos últimos reconhecimentos que Mercedes recebeu foram três indicações para o Grammy Latino 2009 pelo álbum Cantora 1, que reúne duetos dela com vários artistas. O anúncio do vencedor será realizado no dia 5 de novembro em Las Vegas, mas o resultado da vida de Mercedes já é conhecido desde há muito tempo: La Negra iluminou com sua voz alguns dos tempos mais escuros que a América Latina já experimentou.
Nos últimos tempos, cansada e doente, assegurava estar feliz, rodeada de afeto. "Tenho sorte", dizia, "porém me custou muito". A Negra Sosa lutou até o final para cumprir os objetivos do Manifesto do Novo Cancioneiro que firmou em Mendonza, em 1964, quando tinha apenas 28 anos, no qual se propunha renovar a canção popular argentina para conseguir que "se integrasse na vida do povo, expressando seus sonhos, suas alegrias, suas lutas e suas esperanças".
[Fonte: Renato Mendonça-Zero Hora/RS]